terça-feira, dezembro 3

criança problema.

O problema é que ninguém explicou pra nós como a cidade funcionava. Eles só nos colocaram ali e esperavam que a gente começasse a imitar quem já sabia o que fazer. E nós tentamos. Como tentamos. O problema é que nunca dá pra dizer se você está fazendo isso certo ou só sendo uma falsificação grosseira. O problema é que essa cidade tem alguma coisa de errado, que deixa ela diferente de todas as outras, que impede qualquer expressão espontânea. Um tipo de fracasso inoculado dentro dela. O problema é que nós tínhamos chegado lá fazia muito tempo, tanto tempo que ninguém conseguia imaginar outra versão de cidade, só as que apareciam de vez em quando em qualquer lugar, numa conversa ou num programa de TV, mas pra nós o que a gente fazia lá era a mesma coisa. O problema é que a nossa visão era corrompida por estarmos dentro. O problema é que aquilo parecia real, e nós nos sentíamos especiais por comparação aos outros habitantes. É que demora tempo demais pra você entender o quão grande é o mundo o quão idiota é você e o quanto sua cidade foi amaldiçoada. O problema é que ninguém avisa sobre essas coisas então demoramos demais pra começar a desconfiar. E quando percebemos já era bem tarde. O problema é que perceber isso só causou raiva, uma sensação de que fomos enganados a vida toda, de que essa tal de vida não passa de uma versão preestabelecida, envelhecida, falsificada e desgastada por fodas ancestrais e que tem alguém se divertindo a nossas custas. O problema é que nós tínhamos todo um acúmulo de frustrações, sonhos irrealizáveis, antidepressivos e problemas financeiros dentro de nós. Em cada um de nós. E aí ninguém mais quis participar daquilo. O problema foi quando percebemos que não participar ainda era uma falsificação barata. O problema é que a gente não parecia encontrar nenhum lado pra correr e nenhuma realidade onde parar. O problema só foi crescendo. Mesmo quando começamos a destruir tudo, mesmo quando começamos a cortar cabeças, explodir prédios, devorar membros da família, mesmo quando só a raiva de ser enganado controlava nossas ações, mesmo com a violência mais pura no nossos corações, nós não conseguíamos nos livrar da ideia de que só estávamos imitando alguém, que tudo já tinha sido perdido a muito tempo. O problema é que o problema é seu.

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